Constituição de Soc.Adm.d.Ben.Prop

Percepções sobre o que se passa em comprar, vender e viver em Portugal

P.º C. Co. 15/2009 SJC-CT

Sumário: Constituição de sociedade civil sob forma comercial. Selo devido – verba 26.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS).

1 – O Senhor Conservador dos Registos Predial e Comercial de …, a coberto da ap. 2/20090116, registou em termos definitivos a sociedade comercial por quotas «A… – Sociedade de Administração de Bens Próprios, Lda.», com sede na Rua do Sol, …, que tem por objecto a administração de bens próprios.

Da requisição de registo consta que o facto que se pretende submeter a registo é o contrato de sociedade e a designação dos membros dos órgãos sociais, juntando-se para o efeito uma certidão da escritura pública, com a epígrafe «redomiciliação de sociedade», mediante a qual se procede à adaptação dos estatutos vigentes à lei portuguesa, bem como o respectivo certificado de admissibilidade da firma.

Posteriormente, tendo em conta o disposto na verba 26.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, o Senhor Conservador enviou uma consulta ao Senhor Presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P., com o intuito de saber se é devida a cobrança do imposto do selo pela constituição da referida sociedade comercial que anteriormente tinha a sua sede social em Malta e girava sob a denominação «A… Limited». Salienta que a redomiciliação a ser admitida teria de sê-lo para outro domicílo offshore sendo que as transferências de sede são tratadas como sendo constituições de sociedades, pelo que lhe devem ser aplicáveis as regras relativas à circulação de capitais.

Nestes termos, entende que a sociedade deverá pagar o imposto do selo devido pelas entradas de capital, conforme previsto na respectiva tabela, razão pela qual a conta correspondente às quantias devidas pelo referido registo se encontra ainda pendente de confirmação.

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2 – Nesta sequência foi determinada a audição deste Conselho para efeitos de fixação de doutrina respeitante à incidência do imposto do selo referido na verba 26.1 da TGIS nos casos de redomiciliação de sociedades de capitais. A posição deste Conselho vai expressa na seguinte

Deliberação

A constituição de uma sociedade civil sob forma comercial por quotas, na sequência da sua redomiciliação em Portugal, não está sujeita ao pagamento do imposto do selo previsto na verba 26.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo, aprovada pela Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro1 2. 1 Como se sabe, a sede é um elemento essencial do contrato de sociedade de acordo com o prescrito no artigo 9.º n.º 1, alínea e), do Código das Sociedades Comerciais (CSC). A indicação da sede ou domicílio das sociedades é da tal modo importante que a sua falta determina a nulidade do contrato nos termos do artigo 42.º, n.º1, alínea b), CSC (ainda que sanável por deliberação dos sócios como decorre do preceituado no n.º 2 do mesmo preceito). Neste caso, portanto, não se poderá aplicar directamente o disposto no artigo 159.º do Código Civil que permite, na falta de designação estatutária, recorrer ao lugar em que funcione normalmente a administração principal – cfr. MENEZES CORDEIRO, in Manual de Direito das Sociedades, Vol. I, 2004, págs. 418 e 419. A sede social constitui o domicílio da sociedade como decorre do disposto no n.º 3 do artigo 12.º do CSC, sendo que o termo «redomiciliação» mais não é do que um anglicismo da palavra «redomiciliation», que significa atribuir ou dar outro domicílio à sociedade. Assim, quando se fala em redomiciliação da sociedade de um Estado para outro, tal equivale a dizer que a sociedade transferiu a sua sede para outro Estado, só que para que essa alteração seja juridicamente reconhecida é imperioso que se observem determinados preceitos legais impostos pelo país de acolhimento. No âmbito do Direito Internacional Privado das sociedades a doutrina (e a jurisprudência) divide-se em torno da teoria da constituição (a sociedade é regida pela ordem jurídica de harmonia com a qual se constituiu como pessoa colectiva) e da teoria da sede (segundo a qual a lei pessoal da sociedade é a do Estado onde se encontra a sede da administração). Existe ainda quem defenda, embora reunindo menor expressividade, um tertio genus – a teoria da combinação da tese da constituição com a tese da sede, encontrando-se anteriormente reflectida nos artigos 109.º e segs. do Código Comercial Português. 2


A teoria da constituição teve acolhimento no Direito Comunitário e em alguns acordos bilaterais sobre investimento internacional, designadamente na Convenção de Bruxelas – vd., para mais desenvolvimentos sobre esta temática, LUÍS LIMA PINHEIRO, «O Direito Aplicável às Sociedades – Contributo para o Direito Internacional Privado das Sociedades», in ROA n.º 58, Vol. II, 1998, pág. 673 e segs. No entanto, MENEZES CORDEIRO, in Direito Europeu das Sociedades, 2005, págs. 16 e segs., sustenta que a doutrina e a jurisprudência atribuem maioritariamente prevalência à teoria da sede. Por exceder a economia desta deliberação, porém, não tomamos posição acerca de qualquer uma das teorias de que pretendemos apenas dar uma brevíssima nota. No que não podemos deixar de atentar com especial atenção é no disposto no Código das Sociedades Comerciais (CSC) e no Código Civil nos capítulos atinentes às pessoas colectivas que se constituam com intervenção de órgãos públicos e desenvolvam uma actividade qualificável como comercial perante o Direito material português e apresentem, em dado momento, um contacto relevante com um Estado estrangeiro. O artigo 3.º do CSC contém uma regra geral sobre a determinação da lei pessoal das sociedades comerciais que nos remete directamente para o prescrito no artigo 33.º do Código Civil. O n.º 1 deste preceito fixa a regra básica de que a pessoa colectiva tem como lei pessoal a lei do Estado onde se encontra situada a sede principal e efectiva da sua administração. A personalidade jurídica da sociedade que procede à transferência da sua sede de um Estado para outro é susceptível de persistir se nisso convierem as leis de uma e outra, em face da consagração patenteada no n.º 3 do citado artigo 33.º. De igual modo, o artigo 3.º, n.º 2, do CSC adapta esta regra à realidade mercantil nos seguintes termos: «A sociedade que transfira a sua sede efectiva para Portugal mantém a personalidade jurídica, se a lei pela qual se regia nisso convier, mas deve conformar com a lei portuguesa o respectivo contrato social». Decorre claramente destes preceitos que o Direito português não se opõe à persistência da personalidade jurídica da sociedade comercial que transfira a sua sede do estrangeiro para Portugal, desde que sejam observados determinados requisitos, não se vendo razão suficientemente forte para se exigir a extinção e subsequente reconstituição da sociedade, o que, aliás, também não acontece nas sociedades anónimas europeias – cfr., sobre o ponto, MENEZES CORDEIRO, in Direito Europeu das Sociedades, 2005, pág. 941.

Consequentemente, a sociedade comercial que pretenda transferir a sua sede efectiva para Portugal deve outorgar no nosso país documento bastante [escritura pública, documento particular autenticado (artigo 7.º do CSC), ou mediante a utilização dos 3


regimes especiais de constituição de sociedades criados pelos Decretos-Leis n.ºs 111/2005, de 8 de Julho, e 125/2006, de 29 de Junho] no qual seja declarada a transferência da sede e efectuada a conformação do respectivo contrato social com a lei portuguesa, como decorre da análise conjugada do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 3.º do Código das Sociedades Comerciais. Para execução completa deste mandamento e de harmonia com o n.º 3 do mesmo preceito e dos artigos 3.º, n.º 1, alínea a), e 15.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CRC, o representante da sociedade deve promover o subsequente registo no prazo de dois meses a contar da titulação do contrato pelo qual a sociedade se passa a reger – cfr., para mais desenvolvimentos, LUÍS DE LIMA PINHEIRO, in Código das Sociedades Comerciais Anotado, coordenação de MENEZES CORDEIRO, 2009, págs. 77 e 78. Assim, transportando todo o exposto para o caso em apreço nos autos, verificamos que da escritura pública subjacente ao referido registo consta que os sócios deliberaram a transferência da sede estatutária da sociedade «A…, Limited» para Portugal mantendo a personalidade jurídica, e que com vista ao referido fim conformaram os estatutos vigentes com o Direito da nova sede (isto é, com a lei portuguesa) e procederam ao indispensável pedido de registo de constituição da sociedade «A… – Administração de Bens Próprios, Lda.» que, aliás, obtiveram em termos definitivos. Ora, deve entender-se que há conformação do contrato com o Direito da sede da administração (e estatutária, já que no nosso caso coincidem) a partir do momento em que são respeitadas as normas injuntivas deste Direito relativamente à sua formação e validade substancial. No que respeita à forma de acolhimento deste facto nas tábuas cabe salientar que a nossa lei registral não dá guarida à figura da «redomiciliação» de sociedade, tout court. A forma técnica do nosso sistema jurídico registral acolher a transferência da sede de uma sociedade comercial estrangeira é mediante o registo de constituição do contrato social (artigo 3.º, n.º1, alínea a), do CRC), tendo o pedido de registo subjacente à consulta sido formulado precisamente nestes termos.

O consulente salienta ainda, em dado momento, que a sociedade estava domiciliada em offshore e, sendo assim, afigura-se-nos pertinente indagar se é relevante que a sociedade tenha a sede da sua administração num «paraíso fiscal» (entendido este como o país ou território que atribui a pessoas físicas ou colectivas vantagens fiscais susceptíveis de evitar a tributação no seu país de origem ou beneficiem de um regime fiscal mais favorável que o desse país – cfr. RUI DUARTE MORAIS, «Paraísos fiscais e regimes fiscais privilegiados», in ROA n.º 66, Ano 2006, Vol. III. Do ponto de vista dos interesses em presença (designadamente de terceiros), LUÍS LIMA PINHEIRO, in ob. cit., sustenta que nestes casos é irrelevante que a administração da 4


sociedade esteja ou não sediada num «paraíso fiscal» ou sede de conveniência, ressalvado contudo o aspecto dos benefícios fiscais dos sócios, que é alheio ao estatuto da sociedade.

Decorre do exposto que não estamos perante uma constituição de uma sociedade de capitais (criada ex novo) mas perante a conformação dos estatutos de uma sociedade préexistente (e internacionalmente reconhecida) à lei portuguesa pelo que não cabe na facti species da verba 26.1 da TGIS e em consequência de tal não é devida a cobrança do imposto do selo aí consignado porque respeitante à «constituição de uma sociedade de capitais». Mas ainda que assim não se entendesse o artigo 4.º, n.º 3, alínea b), da Directiva 69/335/CEE do Conselho, de 17 de Julho de 1969, reformulada (e revogada nos termos prescritos no artigo 16.º) pela Directiva 2008/7/CE, do Conselho, de 12 de Fevereiro, exclui do conceito de constituição de sociedade de capitais a transferência de um Estado membro para outro Estado membro da sede de direcção efectiva ou da sede estatutária de uma sociedade considerada, para efeitos da cobrança do imposto sobre as entradas de capital, como sociedade de capitais nos dois Estados membros.

A abordagem que o legislador fiscal faz desta questão (na decorrência, aliás, da citada Directiva comunitária), é bem diversa da seguida pelo legislador comercial. Com efeito, para este a transferência da sociedade de um país para outro é processada, a nível de titulação e de registo, como se de uma constituição se tratasse, enquanto que aquele procedeu ao desdobramento da verba 26 da referida Tabela, respeitante à entrada de capitais, de forma a abarcar nela diversas realidades, designadamente a constituição de sociedades de capitais (a inicial) e a transferência de sociedades de um país para outro tendo ainda, quanto a esta, equacionado algumas especificidades, das quais importará especialmente destacar a constante da verba 26.7 da referida Tabela. Esta verba respeitava à tributação da transferência de um Estado membro para outro Estado membro da sede de direcção efectiva de uma sociedade que fosse considerada, para efeitos de cobrança do imposto sobre as entradas de capital, como sociedade de capitais no Estado membro referido em último lugar, e não o fosse no outro Estado membro, salvaguardando neste caso a possibilidade de o mesmo ter sido cobrado no Estado de proveniência. Aquela norma surgiu na sequência da necessidade de conformação do Direito interno português com a Directiva citada a qual, aliás, contém idêntica prescrição – cfr. artigo 4.º, n.º 1, alínea g). Como é sabido, esta Directiva rege a cobrança dos impostos indirectos que incidem sobre as reuniões de capitais a observar pelos Países membros da União Europeia com vista a evitar a dupla tributação e as disparidades que dificultam a livre circulação de 5


capitais dentro do espaço comunitário (que reveste, nesta vertente, as características próprias de um mercado interno). A Directiva 2008/7/CE prescreve no seu artigo 5.º que os Estados membros não devem sujeitar as sociedades de capitais a qualquer forma de imposto indirecto designadamente sobre as entradas de capital e as transferências de um Estado membro para outro Estado membro da sede de direcção efectiva ou da sede estatutária de uma sociedade de capitais (veja-se também, no mesmo sentido, o disposto no n.º 2 do artigo 66.º do Código do Imposto do Selo). Por seu turno, talvez devido ao facto de a integralidade da verba 26 da TGIS ser posta frequentemente em crise por diversos acórdãos do TJCE (vd. Filipe Romão, in Revista de Direito Fiscal e Gestão Fiscal – Fiscalidade n.º 31), a verba 26.7 da TGIS, entre outras, foi revogada por força do disposto no artigo 83.º, n.º 2, da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, pelo que inexiste hoje disposição legal que determine a cobrança do imposto do selo pela transferência da direcção efectiva ou da sede estatutária de uma sociedade de capitais de um Estado membro para outro Estado membro.

Deste contexto resulta com razoável clareza que se a sede originária da sociedade «A…, Limited» se encontrava num país membro da União Europeia – Malta (país que, esclareça-se, não figura na lista dos qualificados como «paraísos fiscais» - vd. Portaria n.º 150/2004, de 13 de Fevereiro, e declaração de Rectificação n.º31/2004, de 23 de Março) – e agora muda a sua sede para Portugal estamos perante uma transferência internacional da sede social, de âmbito comunitário, que não se subsume ao âmbito de aplicação do disposto na verba 26 da TGIS (em nenhum dos seus números). Diversa seria, contudo, a situação se respeitasse a uma transferência da sede da direcção de uma sociedade de um país terceiro para um Estado membro visto que nesta caso já dará lugar à tributação prevista na verba 26.5 da referida Tabela – veja-se, neste sentido, MARTINS ALFARO, «Redomiciliação fiscal, em Portugal, de sociedades de bens imóveis, situada em jurisdição estrangeira considerada fiscalmente privilegiada pela lei portuguesa», in Revista de Doutrina Tributária, 1.º semestre de 2004.

Ora, decorrendo do exposto que pela constituição da aludida sociedade não é devida a cobrança do imposto do selo a conta emolumentar pendente respeitante ao registo em causa deve ser confirmada. 2 Consabidamente, o registo de qualquer acto sujeito a encargos de natureza fiscal não deve ser qualificado positivamente sem que se mostrem pagos ou assegurados os direitos do Fisco, como decorre do disposto no n.º 1 do artigo 51.º do CRC. A citada norma investe o conservador no poder/dever de apreciar o cumprimento das obrigações fiscais relativamente aos factos objecto imediato dos registos peticionados 6

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Lisboa, 24 de Junho de 2009

Deliberação aprovada em sessão do Conselho Técnico de 24 de Junho de 2009. Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, relatora. Esta deliberação foi homologada pelo Exmo. Senhor Presidente em 30.06.2009.

(o que in casu não aconteceu no momento próprio, vale por dizer, aquando da qualificação do pedido), sendo que a não comprovação do cumprimento das referidas obrigações demanda a qualificação do registo com a natureza de provisório por dúvidas, embora a aposição destas só seja admissível no caso de o suprimento das deficiências do processo registral, obrigatoriamente desencadeado pelo qualificador por força do disposto no artigo 52.º do CRC, se revelar infrutífero.

Assim, e porque nos encontramos perante matéria sobre a qual a última palavra pertence à Administração Tributária, parece-nos agora pertinente relembrar o que foi proposto pelo Conselho no proc.º R.Co.11/2005 DSJ-CT relativamente à interpretação de normas de cariz tributário. Aí se salientou que considerando, por um lado, que o controlo do cumprimento das obrigações fiscais relativamente aos factos objecto imediato do registo peticionado incumbe ao conservador por força do prescrito no 1 do artigo 51.º do CRC, mas sendo, por outro, a interpretação das leis tributárias fixada pela Administração Tributária, faria todo o sentido que de jure condendo fosse aberto um canal de comunicação entre este IRN, I.P. e a DGCI para que esta fornecesse àquele, em tempo útil, a sua posição sobre as questões concretas de índole tributária que lhe fossem suscitadas, posição essa que seria então assumida pelo IRN nos respectivos processos.

A análise sumária do registo de constituição da sociedade, quanto aos aspectos formais, demanda uma última observação visto que dele não resulta que se trata de uma sociedade civil sob forma comercial (vd. o disposto nos artigos 1.º, n.ºs 2 e 4, do CSC e 3.º, n.º 1, do CRC), sendo que tal consta especificamente da escritura pública (e do certificado de admissibilidade da firma), pelo que deve proceder-se à sua rectificação ao abrigo do prescrito nos artigos 82.º e 86.º, n.º 1, alínea a), do CRC, complementado ainda com a indicação da anterior sede e da firma da sociedade.


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